Uma rápida passada de olhos pela história da humanidade é suficiente para demonstrar que o canibalismo é uma prática bem mais comum do que gostaríamos de imaginar. A gama de perversidade criativa é de estontear: antropofagia de sobrevivência, culinária, de guerra, endocanibalismo, exocanibalismo, antropofagia medicinal... basta escolher o prato. Apesar do tabu ocidental sobre o consumo de carne humana, sociedades do mundo todo, na pré-história ou em épocas mais recentes, adotaram o costume como forma de sobreviver em situações extremas, vingar-se do inimigo ou até homenagear, com grandes mostras de carinho, parentes e amigos mortos.
Durante muito tempo os antropólogos se recusaram a aceitar os relatos da Era dos Descobrimentos sobre o canibalismo entre tribos das Américas, da África ou da Oceania. Muitos apostavam que as práticas não eram reais, mas tinham sido inventadas pelos conquistadores europeus para denegrir a imagem dos povos escravizados por eles. Hoje, no entanto, existem maneiras detalhadas de determinar se o canibalismo ocorreu no passado remoto ou no presente. É que a forma de preparar e cozinhar um corpo humano deixa marcas específicas nos restos mortais, parecidas com as que existem nos ossos de animais abatidos para consumo, por exemplo.
Segundo a arqueóloga italiana Paola Villa, da Universidade do Colorado (EUA), "há o canibalismo funerário, realizado para honrar os mortos; o agressivo, que visa aos inimigos; e, é claro, o de sobrevivência, praticado em condições extremas, como acidentes e naufrágios. Na Idade Média e na Renascença, houve até o que podemos chamar de canibalismo medicinal, no qual certos remédios incluíam sangue ou outros tecidos humanos."
Escavações em vários lugares do mundo identificaram a prática com pouca margem para dúvidas entre hominídeos, os membros ancestrais da linhagem humana. Dois exemplos famosos envolvem o Homo antecessor, que viveu na Espanha há 800 mil anos, e neandertais que habitaram a França há 100 mil anos. Nos dois casos, as populações canibais estavam em lugares ricos em recursos de caça. Portanto, seja lá o que os tenha levado a comer carne humana (ou pré-humana), desespero e falta de opções não integravam a lista.
Paola Villa escavou o sítio arqueológico francês de Fontbrégoua, de apenas 5.000 anos de idade estimada, e habitada por pastores da nossa própria espécie, Homo sapiens. E o canibalismo ficou claro de novo. "Foi totalmente inesperado. Havia muitos ossos humanos e de animais misturados, tratados exatamente do mesmo jeito. Eles estavam numa região de clima ameno e tinham seus rebanhos. Não estavam passando fome. Parece-me que foi canibalismo agressivo, decorrente de alguma forma de conflito", diz ela.
Churrasquinho de português
Os reis do canibalismo agressivo talvez sejam os tupinambás e outras tribos do grupo linguístico tupi que habitavam o Brasil no século XVI. A ideologia tupinambá, relatada com precisão pelo viajante e militar alemão Hans Staden (que quase foi devorado por eles), tem a ver com o canibalismo como vingança e também como homenagem contra o inimigo. Numa espécie de cerimônia mágica, o devorador ganhava a força e a coragem do devorado, após um longo cativeiro em que o futuro "jantar" era bem tratado e até ganhava uma esposa temporária.
Os tupinambás comiam braços, coxas, costelas e vísceras do inimigo morto. Até as mães da tribo embebiam os bicos dos seios no sangue para que seus bebês provassem da comida humana. Outras tribos não tupis da Amazônia, como os waris, chegaram a praticar o canibalismo agressivo até os anos 1950.
Já o endocanibalismo, que envolve o consumo de membros do próprio grupo social ao qual se pertence, em geral é encarado como uma forma de manter a essência do parente ou do amigo morto perto daqueles que o amaram em vida (ele só é devorado após sua morte natural). É o que ainda fazem os ianômamis, ao comer as cinzas de seus companheiros mortos, ou o que faziam os forés, uma tribo de Papua-Nova Guiné.
Entre os forés, mulheres e crianças comiam o cérebro do morto, enquanto homens devoravam músculos ou até as fezes que sobravam do intestino grosso do finado parente. "A preocupação espiritual que eles mostravam pelo corpo do parente morto, e o desejo de incorporá-lo ao dos vivos, são similares à crença cristã da transformação do pão e do vinho no corpo e no sangue de Cristo", compara o médico australiano Michael Alpers, da Universidade Curtin de Tecnologia. A prática acabou sendo encerrada porque transmitia a versão humana do mal da vaca louca, por causa do consumo da massa encefálica.
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